A série de TV que conta a história da habitação social no Brasil

BELO HORIZONTE COM TRAÇADO QUE DESTACA O EDIFÍCIO JK, AO QUAL A SÉRIE DEDICA UM DE SEUS EPISÓDIOS. Foto: Divulgação/ Nexo Jornal

Obra documental de 13 episódios traça panorama que vai das vilas operárias às ocupações de movimentos contemporâneos

BELO HORIZONTE COM TRAÇADO QUE DESTACA O EDIFÍCIO JK, AO QUAL A SÉRIE DEDICA UM DE SEUS EPISÓDIOS. Foto: Divulgação/ Nexo Jornal
BELO HORIZONTE COM TRAÇADO QUE DESTACA O EDIFÍCIO JK, AO QUAL A SÉRIE
DEDICA UM DE SEUS EPISÓDIOS. Foto: Divulgação/ Nexo Jornal

Exibida até o momento somente em TVs universitárias, a série documental “Habitação social – projetos de um Brasil” fez sua estreia na TV Cultura na quinta-feira (12).

Com 13 episódios de 26 minutos cada, a primeira temporada do programa irá ao ar semanalmente no canal às 0h45. Ela tem como ponto de partida as vilas operárias do início do século 20 e chega aos movimentos contemporâneos de luta por moradia.

A habitação social ou de interesse social é voltada para a parcela da população que tem dificuldade ou que não consegue, devido à renda, ter acesso à moradia – direito previsto pela Constituição – pelo mercado imobiliário formal.

Cada episódio lida com um edifício ou conjunto habitacional brasileiro, nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte e Vitória. A história, o cotidiano e as possibilidades de uso e ocupação desses espaços são narrados por entrevistas com moradores, arquitetos e urbanistas, materiais de arquivo, grafismos, plantas e croquis.

O Nexo assistiu aos 13 episódios e falou com Flavia Brito, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e uma das entrevistadas na série. Veja abaixo os diferentes períodos da produção de habitação social no Brasil, a partir narrativa da obra.

1. Período rentista
Do fim do século 19 até aproximadamente a década de 1930, o período rentista ocorre num contexto de industrialização e crescimento populacional das cidades. Na época, era necessário prover habitação para os trabalhadores urbanos. Assim, casas populares para aluguel começaram a ser construídas pela iniciativa privada, com apoio do Estado brasileiro via incentivos legais e fiscais.

São desse período as vilas operárias, feitas por empresários para alojar os empregados de suas próprias fábricas, como é o caso da Vila Maria Zélia, em São Paulo, cuja construção foi concluída em 1917, que mantém parte de suas casas. Havia também outras vilas particulares, construídas e alugadas aos trabalhadores.

O reconhecimento desses conjuntos como patrimônio se deu tardiamente, motivo pelo qual restam hoje poucos exemplares preservados.

2. Período populista e a participação do Estado

Entre década de 1930 e 1964, o Estado brasileiro entrou de fato na produção de habitação social. Na Era Vargas, em meio ao desenvolvimentismo e à criação das leis trabalhistas, o poder público passou a investir diretamente na habitação social, como uma das frentes da promoção de um Estado de bem-estar.

Desde o começo do século 20, havia na arquitetura e em outros campos do conhecimento uma preocupação internacional em refletir sobre a forma de morar da classe trabalhadora, buscando organizá-la de maneira mais eficiente e racionalizar a construção desse tipo de moradia.

Nesse período, surgiram conjuntos habitacionais de proporções até então inéditas no Brasil, que incorporavam soluções da arquitetura moderna, inspiradas em arquitetos como Le Corbusier (1887-1965).

É o caso do Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes – conhecido como Pedregulho -, localizado no Rio de Janeiro e concluído em 1951; e do Conjunto Habitacional IAPI Lagoinha, em Belo Horizonte, concluído em 1950.

Esses edifícios eram financiados por instituições públicas, como os IAPs, Institutos de Aposentadoria e Pensões, associados às diferentes categorias profissionais, como industriários, bancários e comerciários, Departamentos de Habitação Popular de diferentes estados, e a Fundação da Casa Popular, órgão instituído em 1946 que foi o primeiro de âmbito nacional criado com o objetivo de prover moradia para a população de baixa renda.

3. Ditadura militar e Banco Nacional de Habitação

No início da década de 1960, quando ocorria uma migração ainda mais intensa da zona rural para as cidades, o país enfrentava uma crise habitacional. A produção promovida por órgãos como a Fundação da Casa Popular era insuficiente para solucionar o déficit habitacional das cidades brasileiras.

Em 1964, já durante a ditadura militar, foi criado o BNH (Banco Nacional de Habitação), um órgão federal de financiamento habitacional alimentado, a partir de 1967, principalmente pelo FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).

O banco arrecadava recursos que eram então transferidos para agentes privados responsáveis pela produção, distribuição e controle das habitações. Um dos primeiros representantes desse período foi o Conjunto Habitacional Cecap Guarulhos, projetado em 1967.

Entre as razões que levaram ao fim do BNH em 1986 estão inadimplência, corrupção e a crise econômica do período. Durante suas décadas de atuação, o banco produziu moradias de baixa renda em uma escala muito aquém de solucionar o déficit habitacional.

4. Cooperativas e mutirões

Na década de 1980, mobilizações sociais consolidadas em torno das associações de bairro passaram a reivindicar melhorias de infraestrutura urbana. Em conjunto com o poder público, essas associações atuaram, por meio de mutirões, na construção de conjuntos habitacionais.

Nesse modelo, autogestionado, abriu-se uma possibilidade de produção de habitação social para além da política macro do BNH. Os futuros moradores faziam a gestão do empreendimento e forneciam a mão de obra para a construção, contando com assessoria técnica de arquitetos, engenheiros e mestres de obras.

Foram erguidos dessa forma o Conjunto Habitacional Rio das Pedras – Vila Mara, cuja construção teve início em 1989, e o Mutirão Paulo Freire, ambos na zona leste de São Paulo.

5. Governo Lula e Minha Casa Minha Vida

Com a extinção do BNH em 1986, o país entra em um período de “vácuo” das políticas públicas habitacionais a nível nacional. Esse escopo só foi retomado com a criação do Programa Minha Casa Minha Vida, em 2009, que deu início a uma nova fase da história da produção de habitação social no país.

Criado no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o programa atende a diferentes faixas de renda e, em sua origem, era financiado com recursos do orçamento do Ministério das Cidades, repassados para a Caixa Econômica Federal.

Dez anos após seu lançamento, o programa Minha Casa Minha Vida registra recordes históricos no número de unidades entregues (4,4 milhões, que beneficiaram em torno de 20 milhões de pessoas), mas é criticado por tê-las construído em grande parte em lugares afastados, desprovidos de infraestrutura.

Reivindicando exatamente uma oferta de moradia acessível no centro da cidade, movimentos populares por moradia passaram a ocupar, nas últimas décadas, prédios vazios nas áreas centrais de grandes cidades. O último episódio da série apresenta três ocupações situadas no centro de São Paulo.

Um balanço das políticas

Existente há pouco mais de um século no Brasil, a produção de habitação social dos diferentes períodos provocou avanços mas não chegou a dar conta, até o momento, da demanda por habitação das classes mais pobres.

A série mostra conjuntos habitacionais que buscaram integrar as unidades de moradia a serviços e equipamentos públicos, como os da década de 1950, e sofreram, com o passar do tempo, com a degradação decorrente da falta de manutenção do Estado.

Outros, construídos pelo BNH e pelo Minha Casa Minha Vida, são criticados por reforçar a “periferização” das cidades brasileiras, levando a população de baixa renda para áreas distantes do centro, das oportunidades de trabalho e desprovidas de infraestrutura urbana.

Produção e financiamento da série

Dirigida pelo documentarista André Manfrim, “Habitação social – projetos de um Brasil” foi rodada em 2017 e concluída em 2018. A série foi produzida pela Pique-Bandeira Filmes, produtora capixaba independente, com recursos do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), como parte do Prodav (Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro), voltado para as TVs públicas educativas.

O projeto foi inscrito e contemplado em 2016 pelo edital. Em 2017, já no governo de Michel Temer, o Prodav deixou de ser anual e a seleção de uma nova edição se arrastou até 2019, quando, em agosto, o processo de concorrência foi suspenso por uma portaria do ministro da Cidadania, Osmar Terra, assinada após o presidente Jair Bolsonaro manifestar incômodo (https://oglobo.globo.com/cultura/governo-bolsonaro-suspende-edital-comseries-lgbt-para-tvs-publicas-23891805) com a produção de séries de temática LGBT que haviam sido pré-selecionadas pelo edital.

O corte de 43% no orçamento do FSA previsto para 2020 também coloca em dúvida a continuidade da série. A segunda temporada pretendia abordar conjuntos habitacionais de outras regiões além do Sudeste e Centro-Oeste.

Fonte: Nexo Jornal