Lançado em 2009 para oferecer moradia para a população, o Programa Minha Casa, Minha Vida pouco contribuiu para reduzir o deficit habitacional, principalmente entre a população de baixa renda.
De acordo com uma pesquisa da Fundação João Pinheiro, o deficit habitacional quantitativo (demanda por residências próprias ou alugadas) não sofreu alterações significativas. Era de 6 milhões de moradias em 2009 e passou para 6,1 milhões em 2014 — aumento de 1,6%. No mesmo período, a média do crescimento populacional girou em torno de 1% ao ano.
Além da falta de moradias, existe também o deficit habitacional qualitativo (residências, próprias ou não, com carência de infraestrutura básica ou de regularização fundiária). Em 2014, de acordo com a Fundação João Pinheiro, havia 11,3 milhões de famílias morando em locais com falta de iluminação elétrica, rede geral de abastecimento de água, rede de esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos.
Os números são ainda mais alarmantes se vistos na perspectiva do número de pessoas que vivem nessa situação. O IBGE estima que cada família brasileira possua, em média, 3,3 pessoas. Dessa forma, em 2014, mais de 57 milhões de brasileiros viviam em condições inadequadas.
Para a consultora do Senado Rita Fonseca, o Programa Minha Casa, Minha Vida não minimizou significativamente o deficit habitacional porque a prioridade dele não era essa. Segundo ela, o real objetivo da política pública era mitigar os efeitos da crise financeira internacional na economia doméstica.
Rita é uma das autoras do estudo Programa Minha Casa, Minha Vida: subsídios para a avaliação dos planos e orçamentos da política pública. O diagnóstico do programa é de responsabilidade das consultorias de Orçamento e Fiscalização do Senado e da Câmara dos Deputados.
— O programa foi adotado como medida anticíclica no momento de crise econômica mundial, em que o governo precisava entrar com investimentos para alavancar a economia, gerar renda e criar empregos. Para atingir esse objetivo, o governo enxergou outra possibilidade, que era minimizar o deficit habitacional — analisa a consultora.
O estudo das consultorias contesta a ideia difundida pelo Minha Casa, Minha Vida de que a única solução para o problema habitacional é a construção de novas casas. A locação de imóveis vagos, ponderam os autores, também contribuiria para reduzir o grupo de cidadãos sem habitação. Seria até mesmo mais viável economicamente, uma vez que aproveitaria o estoque ocioso disponível.
Rita acredita que solucionar o deficit habitacional por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida é inviável, uma vez que o deficit qualitativo é significativamente superior ao quantitativo:
— Dois terços do problema são relativos a famílias que já têm suas moradias, mas as instalações são extremamente precárias, sem regulamentação fundiária. Nesses casos, o Programa Minha Casa, Minha Vida não resolve nada.
Outra crítica diz respeito ao desenho do programa, que financia o levantamento de paredes e tetos em lugares remotos e esquece o investimento em mobilidade e acesso a políticas públicas básicas como saúde, educação e saneamento. Os consultores afirmam que, “sem a devida implementação de infraestrutura urbana e regularização fundiária nos empreendimentos construídos, o combate ao deficit quantitativo acaba tendo por efeito alimentar o deficit qualitativo”.
Organização
O Programa Minha Casa, Minha Vida beneficia famílias que possuem renda de R$ 1,8 mil, na faixa 1, até R$ 6,5 mil, na faixa 3. Acompanhando essa escala, os benefícios como subsídios e taxas de juros também são diferentes. As famílias de renda mais baixa podem ganhar até 90% de subsídio do governo, enquanto as de renda mais alta não ganham nenhuma subvenção — apenas taxas de juros menores que as de mercado.
Entre 2009 e 2017, 3,6 milhões de famílias foram beneficiadas pelo programa. Para isso, o governo gastou, no mesmo período, R$ 388,8 bilhões.
As habitações populares foram pensadas como benefício exclusivo da faixa 1. Nos últimos nove anos, 1,2 milhão de unidades foram entregues. No entanto, o estudo aponta que apenas 1.850 das 110.129 unidades contratadas de janeiro a abril de 2017 alcançaram famílias com renda mensal de até R$ 1,8 mil. A consultora explica que esse desencontro foi gerado pela forte crise financeira.
— Quando o Tesouro quebrou, o governo deixou de ter recursos para subsidiar as unidades habitacionais. Se a gente for ver qual modalidade do programa está funcionando, não é mais para as famílias com renda de até três salários mínimos, porque o governo não tem mais dinheiro para pagar o subsídio, que era de até 90% do valor do imóvel. O governo consegue subsidiar apenas os projetos habitacionais que são apresentados para as faixas que conseguem pagar a prestação, e o subsídio não é tão alto — esclarece Rita Fonseca.
Auditoria
As unidades habitacionais populares foram objeto de uma auditoria o Tribunal de Contas da União (TCU). O órgão analisou vários empreendimentos e constatou que uma significativa quantidade de moradias foi entregue com problemas relacionados à execução das obras, como falta de pavimentação asfáltica, calçamento, drenagem urbana e sistema de esgoto sanitário ou pluvial.
— É difícil dizer estatisticamente qual é o percentual de comprometimento, de má qualidade nos empreendimentos no Brasil. Mas, por essa amostra, nós identificamos que boa parte dos empreendimentos têm falhas de construção. Essas falhas podem ser atribuídas às construtoras, podem decorrer de falhas na fiscalização, do processo de supervisão e controle dessas construtoras também — explica o ministro-substituto do TCU Weder de Oliveira.
O mofo nas paredes do apartamento de Maria Sandra Rodrigues da Costa denuncia uma dessas falhas. Ela foi contemplada pelo Programa Minha Casa, Minha Vida no Residencial Parque Paranoá, no Distrito Federal. Desde que se mudou para o local, Maria Sandra conta ter solicitado a reforma das janelas, já que chove dentro de casa, mas nenhuma solução foi tomada pela Direcional, construtora responsável pela obra.
— Quando choveu, eu comecei a ver os problemas. Chove dentro de casa. Fui à construtora reclamar de infiltração umas cinco vezes, mas é sempre a mesma coisa: eles vêm aqui, colocam uma cola na janela e dizem que está resolvido, mas é só começar a próxima chuva que os problemas reaparecem — conta.
Custos
A Portaria 267/2017 do Ministério das Cidades discrimina os valores máximos que podem ser gastos pelo governo na construção das unidades habitacionais. As quantias mudam conforme o modelo de moradia, se apartamento ou casa, e também em razão do estado e do número de habitantes do município. O custo médio em 2017, comparando o número de unidades contratadas com os valores previstos, é de R$ 80,2 mil por unidade.
Com esse valor, o engenheiro civil Carlos Issa afirma ser possível fazer uma casa dentro das especificações previstas na portaria. Ele explica que o valor para a construção da estrutura básica costuma ser bem parecido, independentemente do padrão final do imóvel:
— Toda casa vai ter tijolo, reboco, tubulação hidráulica, tubulação elétrica, e esse custo não costuma variar muito, não existem muitas marcas para esse tipo de insumo. O que costuma variar no custo da obra é o acabamento. Tem revestimento de parede, revestimento de piso e iluminação que são mais caros que outros.
O pesquisador em arquitetura e urbanismo Luiz Alberto Gouvêia fez um levantamento sobre os incêndios que aconteciam de norte a sul do país nas unidades habitacionais do Programa Minha Casa, Minha Vida. A pesquisa constatou que os acidentes eram causados por sobrecarga transferida à rede por equipamentos elétricos.
— A casa era mal construí- da e as instalações não foram pensadas para equipamentos como freezer e geladeira. Por isso, pegam fogo — afirma Luiz Alberto Gouvêia.
Conforme Carlos Issa, as exigências para a construção de moradias populares são modestas e, por isso, levam a um nível de acabamento mais baixo. Entretanto, nada justifica entregar o empreendimento com problemas estruturais ou que não comportem equipamentos comuns ao dia a dia.
— Pelo custo cobrado, é possível realizar uma obra sem nenhum defeito, funcionando tudo perfeitamente — afirma o engenheiro.
Infraestrutura
Outro aspecto que compromete os resultados do programa diz respeito à falta de equipamentos públicos próximos. Segundo a auditoria do TCU, 73,4% dos moradores sofrem com a falta de escolas e creches nas redondezas, 70,2% afirmam não ter unidade básica de saúde, 68,1% não têm comércio próximo e 46,8% julgam o transporte público insuficiente para a demanda.
Para Luiz Alberto Gouvêia, as políticas públicas de habitação, qualquer que seja o governo, têm sempre a mesma característica: a segregação da população.
— A terra urbana é cara, então se colocam as pessoas muito longe. Isso cria problemas de toda ordem porque habitação não é só moradia. É moradia mais acesso ao trabalho, acesso aos equipamentos comunitários. Quando se constrói um conjunto habitacional muito longe e não existem esses equipamentos, cria-se um problema enorme para a população. Isso aconteceu no Brasil inteiro, ao longo destes últimos 100 anos — afirma o pesquisador.
Marta Amália, outra moradora do Residencial Parque Paranoá, sofre as consequências do quadro descrito por Gouvêia. Para ser beneficiada pelo programa, ela precisou, por exemplo, largar o emprego em Taguatinga, cidade localizada a 45 km da nova moradia. E não é só:
— Eu tenho duas filhas, uma de 11 anos, que está morando com o pai porque eu não consegui a vaga na escola aqui perto, e uma com 5 anos, que estuda a 15 km do apartamento. Eu pago R$ 250 de van para levá-la à escola, porque o transporte escolar do governo não leva crianças dessa idade. A menor fica, em média, 14 horas fora de casa porque precisa sair de madrugada, às 5h, para conseguir chegar à escola, e retorna entre as 19h30 e as 20h.
Senado
Para tentar solucionar esses problemas, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apresentou o Projeto de Lei do Senado (PLS) 465/2016, que atribui a responsabilidade do provimento dos serviços públicos básicos aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios. A entrega dos empreendimentos pelas empreiteiras só será possível se for feita em conjunto com os equipamentos de saúde, educação, comércio e lazer.
— Com a experiência acumulada dos últimos anos, foram identificados alguns aspectos para aprimorar o alcance social, a eficiência e a efetividade do programa. O projeto quer garantir os serviços complementares à habitação — esclarece Lindbergh.
A relatora do projeto na Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR), senadora Regina Sousa (PT-PI), votou a favor da proposta.
— Todos os entes envolvidos precisam trabalhar juntos para entregar as unidades habitacionais completas. Não adianta terminar a obra e a casa ficar um ano esperando energia elétrica, por exemplo. O projeto vai nesse sentido de agilizar o processo — argumentou a senadora.
Outro ponto do projeto diz respeito à regularização fundiária. Muitas unidades populares, atualmente, são entregues sem qualquer título que dê aos beneficiários garantia jurídica sobre o terreno. As famílias se tornam donas das casas, mas não da terra, uma vez que o local continua público. Essa questão dificulta processos como inventários e venda dos imóveis.
— O primeiro conjunto habitacional de Teresina foi entregue há mais de 50 anos. Só agora as famílias estão recebendo os títulos de terra — afirma a senadora Regina Sousa.