No ritmo atual, SP só zera déficit habitacional em mais de cem anos, diz secretário

Edifício Wilton Paes de Almeida fazia parte da vista da Secretaria da Habitação. Foto: Simon Plestenjak/UOL

Edifício Wilton Paes de Almeida fazia parte da vista da Secretaria da Habitação. Foto: Simon Plestenjak/UOL
Edifício Wilton Paes de Almeida fazia parte da vista da Secretaria da Habitação. Foto: Simon Plestenjak/UOL

De sua sala no histórico edifício Martinelli, no centro de São Paulo, o secretário de Habitação do município, Fernando Chucre, avistava até pouco mais de um mês atrás o prédio que se transformou em símbolo da tragédia social do país.

O edifício Wilton Paes de Almeida pegou fogo e desabou no dia 1º de maio, deixando ao menos sete mortos e cerca de 170 famílias desabrigadas. O prédio pertencia à União, era considerado patrimônio histórico e estava sob a guarda do município. Ocupado por sem-teto, tinha condições precárias.

Arquiteto, urbanista e ex-deputado federal pelo PSDB, Chucre, 51, diz que, antes da tragédia, a prefeitura buscava alternativas para remover as famílias ocupantes. Agora, pouco mais de um mês depois do desabamento, ele quer a construção de um novo edifício no local para atender os desabrigados.

O secretário afirma que o problema de moradia em São Paulo é um grande desafio e que se agrava com a situação econômica do país, com alto desemprego. O Orçamento do município para a habitação está muito longe de solucionar o problema do déficit habitacional, que se aproxima da marca de meio milhão de unidades, uma tarefa para mais de cem anos, de acordo com os cálculos da gestão Bruno Covas (PSDB). “Nenhum administrador pode falar que vai resolver isso”, afirma Chucre.

Outros números dão a dimensão do problema. A prefeitura monitora 206 ocupações em toda a cidade —elas crescem na periferia. Nelas vivem 46 mil famílias. A fila da habitação no município tem mais de 1 milhão de inscritos, sendo que 110 mil famílias estão com os cadastros atualizados à espera de atendimento do poder público.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida pelo secretário ao UOL.

Déficit habitacional para mais de cem anos

“Na capital, o déficit habitacional é estimado em 474 mil novas moradias [para famílias com renda mensal de até seis salários mínimos], sendo 358 mil para famílias com renda de até três salários. Por mais que o Minha Casa, Minha Vida faixas 2 e 3 viabilize unidades, esse público do déficit não consegue contratar financiamento. Esse cara, normalmente, é o cara que está ocupando áreas.

Levaria mais de cem anos para acabar com o déficit. A conta é assim: quanto o município investe por ano na construção de moradias (R$ 580 milhões, de acordo com a prefeitura) e quanto precisa para produzir as 474.000 unidades. É conta de padaria. Se colocar só o déficit de 0 a 3 salários mínimos, dá 90 e poucos anos. Se colocar de 0 a 6, dá mais de cem anos.

Nenhum administrador pode falar que vai resolver isso. Você precisa de dinheiro para produzir casa. Mesmo que use outros métodos, como PPP (Parceria PúblicoPrivada) e locação social, você diminui o déficit, mas é insignificante. Nossa meta é entregar 4.000 unidades de PPP. É nada frente ao déficit.”

Essa administração, se trabalhar direito e tiver eficiência, vai entregar 25 mil unidades habitacionais, que é o dobro do que a gestão anterior produziu. Vinte e cinco mil num déficit de 474 mil é insignificante. A produção do poder público é muito baixa.”

Prefeitura tem onde construir, mas falta dinheiro

“Tem uma lenda urbana que diz que a gente precisa desapropriar área para gerar empreendimento habitacional. Só o município de São Paulo tem um patrimônio imobiliário formidável, tem milhares de imóveis que poderiam estar sendo utilizados para a produção de habitação. Prédio eu tenho, terreno eu tenho um monte.

O João Whitaker [último secretário de Habitação na gestão Fernando Haddad, PT], que me antecedeu, fez um trabalho bom, desapropriou muitas áreas, deixou um parque de terrenos muito bom para a gente gerar projetos, empreendimentos, fora o patrimônio público municipal.

“Temos áreas suficientes para produzir unidades habitacionais. O que não temos? Não temos financiamento.”

Considerando que a capacidade de Orçamento do município cada vez se reduz por várias razões, [como o] déficit da Previdência, e que a gente não teve crescimento do orçamento para a habitação, o que a gente está tentando é ter mais eficiência na aplicação do recurso e buscar recursos em outros entes. Isso é o óbvio.

De 2009 a 2016, São Paulo contratou 20 mil unidades faixa 1 do Minha Casa, Minha Vida e entregou por volta de 12 mil unidades. Em um ano e meio, a gente já contratou mais 8.000 unidades. É uma mudança.

A gente foi buscar outras fontes, por exemplo, no programa de locação social. Desapropriamos dez edifícios, fomos buscar uma parceria de um projeto piloto no Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que tem um capítulo específico para locação social.

E, principalmente, PPP [Parceira Público-Privada], que é sair da linha de buscar financiamento em outros entes que tem tantas dificuldades quanto a gente.

Soltamos o edital da nossa PPP em março. Nossa meta é para 34 mil unidades habitacionais. É óbvio que não contrata as 34 mil unidades, mas, num cenário de baixa capacidade de investimento do poder público, você está aumentando a produção do município com financiamento privado. Serão 80% de Habitação de Interesse Social, na faixa que a gente tem déficit habitacional.”

Auxílio-aluguel consome o Orçamento da pasta

“Tenho 28 mil famílias no auxílio-aluguel, que é uma porta de entrada que a gente tem um certo descontrole. Ele vem mais que dobrando gestão a gestão. Foi uma das coisas que a gente ficou debruçado fortemente [no ano passado]. Tinha problemas de fraude. Se pegar gestão por gestão, desde 2002, 2017 foi o primeiro ano que não houve crescimento do número de famílias atendidas com bolsa aluguel.

Hoje [o auxílio-aluguel] é o equivalente a 40% do recurso de investimento da Secretaria de Habitação. A gente tem um gasto de R$ 140 milhões, R$ 150 milhões, que foi o que a gente herdou do último ano do Haddad.”

“As pessoas criticam o auxílio-aluguel, os próprios movimentos de moradia criticam, a maior parte deles não é favorável porque compromete a capacidade da habitação de investir no atendimento definitivo.”

O desabamento do Wilton Paes de Almeida

“No começo da gestão, fomos identificar, por conta do grupo de mediação de conflitos, casos, especialmente ocupações, em que é óbvio que o poder público precisa tomar alguma medida. Seja desocupar se o edifício não tem condição estrutural e de segurança para as famílias que estão lá, seja propor uma solução em termos de locação social.

Fomos pedir ao governo federal que mandasse o edifício Wilton Paes de Almeida para a prefeitura porque a gente queria interferir naquele espaço. Solicitamos o edifício para a nossa guarda. Já estava na nossa guarda, inclusive [no momento do desabamento]. O Wilton foi transferido no final de setembro, começo de outubro. Imediatamente, a gente entrou com o grupo de mediação de conflito. Com relação a eventuais medidas que deveriam ser tomadas, a gente tem uma certa tranquilidade.

Não é um público desconhecido. Neste ano foram mais de seis reuniões feitas dentro do edifício, com o tal do Ananias, o tal do Careca [apontados como líderes do movimento que ocupava o prédio], com uma senhora que era como a síndica da ocupação, para dar uma destinação. Queríamos desocupar o prédio porque ele era tombado [pelo patrimônio], com características comerciais. A tipologia, a arquitetura daquele edifício não era adequada para fazer uma reforma para habitação.

A gente estava negociando com o Alexandre Schneider [secretário municipal de Educação] de ele dar o [prédio do Cine] Marrocos para a gente. O Marrocos foi desapropriado pela Educação, eles tinham a intenção de fazer lá uma área administrativa da secretaria. Ele é mais compartimentado, teria facilidade para adaptar para a habitação. Então, ele passaria o Marrocos para mim, e eu passaria o Wilton Paes para ele, para ser reformado e virar a sede da Secretaria da Educação.

Negociamos com as famílias, cadastramos para encaminhar para algum atendimento que acabou sendo interrompido pelo acidente. Um mês antes, a gente identificou 118 domicílios e 171 famílias, considerando coabitação de famílias no mesmo domicílio. E vinha naquela negociação de qual seria o atendimento para as famílias saírem. A gente estava atuando com o grupo de mediação para desocupar. Infelizmente aconteceu a tragédia, mas a prefeitura estava atuando fortemente para desocupar.

Quando acontece uma tragédia como essa, a sociedade cobra mais agilidade do poder público, que acabou gerando aquele grupo que a Defesa Civil está coordenando [para vistoriar outras ocupações]. E a gente está vistoriando. A vistoria não é ‘vamos interditar todos os edifícios e tirar todo mundo’. É de requalificação da segurança, o que pode ser feito naquele edifício para você, enquanto não tem uma decisão sobre a destinação, manter as famílias residindo lá com um nível mínimo de segurança, aceitável pelo poder público, no sentido de reduzir riscos de acidentes como este que aconteceu.”

“Frente a todas informações de déficit e de falta de capacidade de investimento, se eu tiro 4.000 famílias, que é o número estimado de famílias em ocupações em edifícios na região central, o que eu faço com elas? Coloco 4.000 famílias na rua? Chamamos todos os movimentos para trabalhar junto porque é uma questão de interesse mútuo.”

O futuro do terreno

“A gente está tratando uma saída definitiva com o ministro das Cidades, Alexandre Baldy, com o Nelson Baeta, secretário de Habitação do Estado. Vai ser dado algum tipo de encaminhamento [às famílias]. Neste caso, teria de ser feito um chamamento especial pelo Ministério das Cidades ou por outro ente que não seja a prefeitura. A gente já trocou muita informação e está construindo uma saída que o prefeito deve anunciar nos próximos dias.

Se demorar mais que 12 meses [para a solução se materializar], o município continua pagando auxílio-aluguel até ter uma unidade habitacional pronta.

Vou querer fazer habitação no terreno. A gente continua com a guarda. O município vai apresentar um projeto, uma destinação para a área. [A prefeitura] comprova que tem capacidade de financiamento, e aí é o terreno é transferido definitivamente para o município. A gente pretende aprovar fazer alguma coisa ali rapidamente. A proposta de Habitação é fazer um empreendimento habitacional ali. O prefeito [Bruno Covas] vai decidir com o ministro.

Se for pelo Minha Casa, Minha Vida, resolve uma série de problemas, especialmente com relação à demanda, porque a gente está falando de uma demanda de alta vulnerabilidade. Tem imigrantes e famílias que não conseguem comprovar renda.”

“A proposta da Habitação é, via recursos do Minha Casa, Minha Vida, fazer um chamamento especial, com demanda vinculada, para poder atender as famílias [que moravam no Wilton Paes de Almeida].”

Centro de SP vai ter um Censo de moradia

“A gente vai fazer o censo de cortiços, ocupações e áreas subutilizadas na região central para poder organizar políticas públicas. A gente contratou o Censo com dinheiro da Operação Urbana Centro. A contratação [da fundação que fará o trabalho] sai neste mês de junho. Deve ficar pronto este ano. Até dezembro, a gente deve estar com um quadro muito legal do centro.”

Ocupações crescem na periferia

“As ocupações não são um fenômeno do município de São Paulo, são da região metropolitana. A população de baixa renda procura moradia onde tem algum serviço público de melhor qualidade ou proximidade do emprego.

“Tem dois tipos de ocupações: a dos edifícios, que é característica da região central, e a de áreas públicas e privadas na periferia de São Paulo. Esta [na periferia] vem num crescente nos últimos anos e continua ocorrendo sistematicamente apesar dos esforços do município. A maioria absoluta das ocupações [na periferia acontece] em terrenos privados.”

Na região da avenida Bento Guelfi [bairro do Iguatemi, no extremo leste], tem umas 15 ocupações só no eixo da Bento Guelfi, de movimentos variados.

Tinha uma demanda enorme dos movimentos no sentido de que a prefeitura desapropriasse [os terrenos ocupados]. Como viram que a gente endureceu muito — a gente não desapropria em hipótese nenhuma no caso de terreno privado–, vieram para uma estratégia diferente: se o município consegue desenvolver, e nesse caso é interesse do município, alguma política para fazer urbanização de lotes.

Coloquei uma condição: que o movimento se organize e faça a aquisição da área diretamente com os proprietários. A gente tem um grupo de mediação de conflitos que faz esse trabalho com eles.

E a gente tem um problema sério que são os movimentos de moradia pedindo socorro para a gente por conta do crime organizado. Movimentos mais organizados adquirem áreas, procuram financiamento, vêm pedir ajuda nossa para projeto. Virou negócio do crime organizado [fazer ocupações] em áreas deles [dos movimentos].”

A alternativa da locação social

“A locação social não é uma substituição de política habitacional, como a PPP não substitui a política habitacional existente. São complementares à política existente. Existe uma população de extrema vulnerabilidade que mesmo os empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida não conseguem atender. Você coloca o cara no apartamento e ele tem dificuldade para pagar as taxas mínimas de água e energia, mesmo sendo tarifa social, e a gestão condominial. Isso gera problemas com os demais moradores.

“Esse público de extrema vulnerabilidade acaba vendendo as unidades habitacionais e volta para a situação de rua, para a situação de morar em favela, em área de risco, área de interesse ambiental.”

Constatado isso, a gente identifica nos modelos existentes que não tem uma solução adequada para esse público. A locação social, na nossa opinião, é essa solução. Estamos fazendo vários projetos pilotos de locação na cidade. Na PPP do município, coloquei que até 15% das unidades podem ser destinadas para locação social. A gente já desapropriou nove edifícios e um terreno. Estamos reformando, e a gestão vai ser de maneira diferente, não vai ser só do poder público. A gente vai envolver outras organizações para testar modelos. A gente está fazendo parceria com universidades, pode ter autogestão, entre outros.”

Plano de Habitação deve virar lei neste ano

“A gente recebeu o Plano Municipal de Habitação pronto, que foi apresentado na Câmara no final da gestão anterior. No ano passado, discutimos se a visão que está no plano é a visão desta administração. No geral, está muito alinhado conosco. E tem dois ou três pontos, como o Serviço Social de Moradia, que a gente está questionando, discutindo se vai apresentar uma proposta alternativa agora na Comissão de Desenvolvimento Urbano.

Ao longo desse ano [o plano] vai ser aprovado. Tem todo o procedimento de audiências públicas e discussão com outras secretarias. Lembrando que o plano não é uma solução para nenhum dos problemas que a gente tem. É um ordenamento da política habitacional do município de uma maneira um pouco mais clara. Porque hoje tem um emaranhado de regras, de leis, portarias, decretos e políticas que não estão organizadas num único documento.

O plano não é nada mais do que uma consolidação do que existe na legislação habitacional. Ele não tem novidade. Se pegar o que está lá, é o que existe na Secretaria de Habitação em caixas diferentes.”

Habitação e eleição

“É impressionante como habitação não é pauta. Discordo frontalmente de tudo o que foi feito no Minha Casa, Minha Vida sob o ponto de vista urbanístico e arquitetônico, mas [o programa federal iniciado no governo Luiz Inácio Lula da Silva] disponibilizou recurso para produzir unidade habitacional. Foi dada [na época] prioridade, de certa maneira, para a produção habitacional.”

“Fora esse suspiro, a gente vive numa falta de inteligência. O Minha Casa, Minha Vida emburreceu o poder público inteiro, que desaprendeu a fazer o pouco que sabia na área de habitação e concentrou todas as suas energias para fazer projetinho padrão e buscar dinheiro no governo federal.

De certa maneira, a redução dos recursos do Minha Casa está forçando os gestores públicos a procurar outras soluções, de parceira público-privada, de locação social, para que a gente não fique dependente do programa.

O acidente [desabamento do Wilton Paes de Almeida], a redução dos recursos disponíveis para habitação e essa tentativa dos gestores públicos de buscar outras saídas são uma oportunidade ímpar para a gente avançar em alguma coisa na habitação. E espero que seja assunto com certo destaque nos discursos dos candidatos a presidente e a governador.”

Fonte: UOL